sábado, 30 de outubro de 2010

Texto de Nelson Rodrigues

Um açougueiro sentimental – A Manhã 01/05/1928
Agredido a faca
Quando recitava Baudelaire
O Manoel estava, ontem, sacudido de exaltações frenéticas. Desde que se erguera da cama, uma ânsia, uma
vontade de qualquer coisa, imprecisa e vaga, dominava-o, tornava-o febril e arquejante.
Embora fosse açougueiro, isso não o impedia de ser um sentimental, um romântico, um artista. Sua
sensibilidade, finíssima, era um ninho de maviosas e cristalinas emoções estéticas.
Ser testemunha do amanhecer, da aurora cheia de sangue, era para o Manoel um prazer indefinível,
enlouquecedor.
Acordava, de propósito, cedinho, e ia alegre, feliz, assistir os toques da alvorada, resplendendo na curva do
horizonte, cheio de uma delicadeza tocante de cores. Diante da manhã nascente, era de ver como o sentimental
açougueiro se comovia e ficava afogado em lagrimas românticas. Ele, em pé, heróico, grande, avultado, sobrelevado
de si, desejava mundos. Desejava palácios, ouro, diamantes, cristal, luz, prata, mulheres. Aquele rubor do horizonte
parecia-lhe uma grande pétala de rosa. E o sol, pouco a pouco, vagaroso, ainda com a luz empanada pelo vermelho
uníssono, escravizava todos os detalhes da manhã.
E a natureza, inda pouco sopitada, presa à sombra profunda e tenebrosa da noite, agora liberta pela luz farta e
milionária, canta, sorri, papagueia, brilha, reflorescente, moça, robusta.
E o Manoel chora de mais intensa emoção panteísta. E pensa em fazer versos que serão espargidos na
refulgência da glória da natureza.
Já faz imagens e plasma os versos e distribui os hermistíquios.
Mas, de repente, quando os surtos da poética já vão em meio, o sol brutal e profano expulsa e despedaça a
penumbra sanguínea e fresca, doce e suave, coma blasfêmia de um jato forte e hercúleo de luz. A grande delicadeza
de cor, a deliciosa e meiga paisagem de meia-tinta morena morreu.
E a paisagem boçal e cavalar de sol forte e cegante não inspira finas emoções, leves devaneios espirituais,
sentimentos melancólicos. Pelo contrário. Só inspira vontades animais de movimento, de larga atividade muscular.
Nada de coisas de espírito, de estética, de sentimento. Por isso Manoel renega a manhã, logo que o sol aparece. Mas,
fica desgostoso, desgraçado, miserável. Sente-se o homem mais infeliz do mundo.
Esse episódio acontece todas as manhãs. Manoel todas as manhãs sente as mesmas emoções.
Ontem, ele acordou, como pouco atrás declaramos, exaltado, ansioso, frenético. Desejava uma coisa e não
percebia o que era.
A descoberta foi um alivio na alma do Manoel. Meio caminho andado.
Agora, para adquirir a felicidade, a ventura, a alegria espiritual, para, em suma, solver a conjuntura, não era
preciso nada mais senão a descoberta duma pequena conviniente.
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Animado com essa idéia, partiu, Manoel, para a Zona do Xuxu. Cuidava ele que esse lugar era um ninho de
belezas inéditas, de anjos de ternura. Assim, ninguém com mais idoneidade do que o Mangue para resolver o seu
problema espiritual.
O homem foi para o Mangue. Ali chegado, começou a enviar, a toda figura feminina que lhe passava ao lado
ou à frente um exame meticuloso e penetrante. Chegava ao mais aceso da pesquisa, quando apareceu a figura
adequada. Então, Manoel, garboso, elegante, altivo, mostrando a alvura cintilante dos dentes, recitou ao anjo de
ternura uma multidão de versos Fleur du mal, de Baudelaire.
A doce figurinha, que era uma mulata reforçada, dispôs-se a ficar melancólica. Quando, porém, já ia suspirar e
fitar o ocaso, aparece-lhe o “coronel”, temível capoeira. O homenzinho apareceu no momento em que Manoel gemia
Baudelaire. Vendo o sedutor da pequena, ele se encheu de ira. Ficou terrível. E não conversou... Puxou uma faca e
feriu, no peito, o sentimental açougueiro. Ato contínuo evadiu-se.
Reclamada a assistência, esta socorreu a vítima que é Manoel Ferreira da Silva, português, residente na praça
da Igrejinha.
O palco do drama foi a rua General Pedra, esquina de Carmo Neto.
Fonte: O baú de Nelson Rodrigues